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Autor: Ascom Adufg-Sindicato
Publicado em 29/01/2020 - Nota
Criacionismo e a Escala de Scott
Artigo do blog do professor José Alexandre Felizola
Na postagem anterior, “Adão era uma Australopithecus”, discuti rapidamente a questão do criacionismo no contexto de divulgação científica, mostrando as enormes dificuldades em apresentar ideias sobre evolução em um ambiente dominado por visões religiosas fundamentalistas, sem uma boa educação científica em nível primário e secundário e com forte doutrinação nas famílias e nas igrejas.
Entretanto, resolvi voltar novamente a esse tema considerando a recente nomeação do Prof. Benedito Aguiar para a presidência da CAPES. Como já expliquei anteriormente, a CAPES é uma grande fundação ligada ao MEC e responsável por uma série de ações de formação de recursos humanos altamente especializados, especialmente a avaliação dos programas de Pós-Graduação stricto sensu e seu financiamento, principalmente pela concessão de bolsas de Mestrado e Doutorado. Considerando a importância da CAPES e o fato de que a maior parte da pesquisa científica no país está, direta ou indiretamente, ligada aos programas de Doutorado, a nomeação de um novo presidente, e eventualmente a mudança nos seus diretores, sempre causa apreensão e chama atenção da comunidade científica.
A indicação de Aguiar, entretanto, chamou atenção e foi bastante divulgada pela mídia e nas redes sociais não só pela importância da CAPES mas, principalmente, pela posição dele em relação ao criacionismo. Ex-reitor da Universidade Mackensie, Aguiar promoveu uma série de eventos sobre a “teoria” do Desenho Inteligente (Inteligent Design; DI daqui para a frente, ver mais detalhes abaixo), criou um Núcleo de Pesquisa na Mackenzie em “Ciência, Fé e Sociedade”, apoiado pelo Discovery Institute dos EUA, um dos principais centros sobre DI. Explicitamente, ele declarou há pouco tempo que
“Queremos colocar um contraponto à teoria da evolução e disseminar que a ideia da existência de um design inteligente pode estar presente a partir da educação básica, de uma maneira que podemos, com argumentos científicos, discutir o criacionismo”.
A indicação de um pesquisador com esse tipo de visão para a presidência da principal agência de fomento à pesquisa e pós-graduação do país é um péssimo sinal e mostra (mais uma vez...) a visão retrógrada do Governo em relação à ciência e à educação, como já discuti diversas vezes aqui no blog. E vejam que o Prof. Aguiar tem Doutorado em engenharia elétrica, foi reitor da Universidade Mackenzie por muitos anos e inclusive presidente do CRUB (Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras). Não podemos de fato dizer que ele é uma pessoa que não “é da área”, ou que “não conhece” ciência, tecnologia e ensino superior. Como alguém com uma formação científica apoia tão claramente pseudociência? Esse é um ponto importante a considerar e levanta muitas questões...Discuti anteriormente que, em tese, um cientista não poderia ser um criacionista, porque isso envolve uma distorção completa na própria concepção de ciência. Mas o fato é que as pessoas não entendem bem isso e elas, por uma série de razões, não conseguem se libertar da sua educação e criação e precisam de religião em suas vidas. Não entendem que são campos diferentes e, muitas vezes, contraditórios (dependendo do nível de fundamentalismo religioso)? Será que alguns conseguem de alguma forma “compartimentar” o cérebro e viver algo como uma “vida dupla”? Além disso, na prática muitos componentes da ciência, especialmente em áreas mais tecnológicas, podem ser desenvolvidos independentemente de uma compreensão histórica dos processos envolvidos (e em muitos casos esses processos históricos não são importantes, ou a compreensão deles não é relevante para entender o estado atual dos sistemas), e isso de certo modo cria uma dificuldade em delimitar onde ciência e religião se separam e como distinguir ciência de pseudociência.
Infelizmente, temos de fato vários cientistas e pesquisadores, e mesmo biólogos, que são criacionistas. Infelizmente, na prática, a frase famosa de Theodosius Dobzhansky “Nada em Biologia faz sentido exceto à luz da evolução” não é 100% verdadeira. Muito em biologia aparentemente faz sentido para as pessoas independentemente de evolução, por mais estranho que isso possa parecer. Talvez a origem para esse aparente paradoxo pode estar na separação discutida por Ernst Mayr, também um dos arquitetos da teoria sintética da evolução, entre explicações causais "próximas" e "últimas" em Biologia, que pode ser de fato complicada (e que pode estar, portanto, de certo modo equivocada, como coloca Laland e colaboradores nesse artigo na Science).
A defesa do DI feita pelo Prof. Aguiar mostra que há um problema sério de aceitar pseudociência e confusão entre os papeis da ciência e da religião na sociedade, sem dúvida. Mas, por outro lado, a questão do criacionismo é bem mais complexa e, como vamos ver a seguir, uma simples divisão entre “evolucionismo” e “criacionismo” pode ser uma falsa dicotomia. Isso torna o ponto central levantado pelo Prof. Aguiar, que é o ensino do criacionismo nas escolas, muito mais difícil de resolver e torna ainda mais grave a questão que coloquei sobre divulgação científica na minha postagem anterior sobre o tema.
Essa ideia de ensinar o criacionismo nas escolas remonta ao início do século XX com o famoso julgamento de Scopes, no Tennessee em 1925 e, desde então, por várias vezes a justiça nos Estados Unidos entendeu que religião e ciência são temas diferentes e que isso não pode acontecer. No Brasil, lembro que há alguns anos algo similar aconteceu no Governo do Estado do Rio de Janeiro, liderado pelos evangélicos Anthony Garotinha e Rosinha Matheus. Essas novas tentativas, nos EUA e em diversas partes do mundo, estão em grande parte baseadas em uma nova estratégia, que é “equiparar” a teoria evolutiva ao criacionismo, tornando este último “científico” e propondo algo como “ciência da criação”. Nesse contexto, entendo que a principal ação nesse sentido foi justamente o desenvolvimento da chamada “teoria” do Desenho Inteligente. A teoria do DI não é, de fato, uma teoria científica, e simplesmente usa linguagem e arcabouços científicos para fazer parecer ciência, se caracterizando portanto como pseudociência. Está também associada a uma nova estratégia de propogar Fake News e desacreditar a teoria evolutiva para tentar alcançar seus objetivos, como mostra McIntyre em seu “The Scientific Attitude”, que já discutimos anteriormente. Há certamente uma fasta literatura e muita discussão sobre criacionismo e DI, e sugiro aos leitores que queiram se aprofundar no tema começar pelo artigo do meu colega Roberto Fonseca, do Departamento de Ecologia da UFRN na Ciência Hoje e várias postagens de Carlos Orsi no blog “Questão de Ciência” . O livro de Eugenie Scott (Evolution vs Creacionism: an introduction) e o de Michael Shermer (Why Darwin Matters: the case against inteligente design) são também muito interessantes e apresentam uma ampla discussão inicial sobre esse tema, mas há uma série de livros mais técnicos escritos por biólogos importantes como Robert Pennock e Michael Ruse de 2008 (But is it Science?) e Massimo Piggliucci de 2002 (Denying Evolution). Sob um ponto de vista mais conceitual sobre a epistemologia do DI, o capítulo 8 do “Scientific Attitude” de Lee McIntyre é uma referência obrigatória.
Em resumo, o que o DI se propõe a fazer é encontrar pontos problemáticos e aparentemente controversos, ou ainda pouco conhecidos e explorados, da teoria evolutiva a fim de "demonstrar" que ela é falsa (os exemplos favoritos remetem à questão da “complexidade irredutível”, associada à origem do olho, das asas das aves ou do flagelo dos microrganismos; todos aliás bem compreendidos hoje pela teoria evolutiva). Um dos pontos centrais do DI é que a grande complexidade dos organismos vivos implica, por definição, na existência de um “projetista”, ou “designer” (no caso, uma entidade sobrenatural superior, ou Deus; mas como mostra Shermer, dentro dessa visão teísta arcaica, essa entidade poderia ser também um ET com ciência e tecnologia extremamente avançada! A 3ª. Lei de Arthur Clarke então se aplica aqui...). Esse argumento do “projetista” remete à origem da “Teologia Natural” pelo revendo William Paley ainda no século XVIII (que criou a metáfora do relojoeiro, e que Richard Dawkins, de forma muito criativa, inverteu no seu livro “O Relojoeiro Cego”).
Mas, voltando ao ponto mais importante da fala do Prof. Aguiar citada acima, temos que discutir a questão de ensinar então uma visão criacionista do mundo como um contraponto à teoria evolutiva. Há muitos pontos importantes para discutir em torno de propostas como essa e, de modo geral, a discussão no fundo é sobre a relação entre ciência e religião e os seus respectivos papéis na sociedade. Vamos discutir melhor esse tema eventualmente, mas quero chamar atenção aqui um ponto importante, levantado por Shermer: o que o Prof. Aguiar quer realmente que ensinemos como “equivalente”, ou sendo um “contraponto”, à teoria da evolução?
Em primeiro lugar, muito rapidamente, vamos assumir apenas por um momento que o argumento de eliminação da alternativa usado no DI (ou seja, se não sabemos tudo sobre evolução, então é porque ela não aconteceu e portanto a ideia da criação bíblica é verdadeira), é valido e que não temos muita evidência de que houve evolução e de seus mecanismos. Por que acreditamos no Genesis e não em qualquer uma das muitas outras visões sobre a criação? Eu, particularmente, gostei de um dos mitos chineses sobre a criação, que li no livro “Assim tudo começou”, de Luiz Antônio Aguiar, que diz algo como
Reza um mito muito, muito antigo, que, por dezoito mil anos, Pangu esteve adormecido dentro de um colossal ovo cósmico. O ovo era o que existia, até então, mas durante todo esse tempo Pangu não estava dormindo. Seu corpo, que nasceu menor do que o olho pode enxergar, crescia, ocupando todo o espaço interno do ovo...
Quando finalmente a casca do ovo se rachou, Pangu, o ser fundamental, não era mais Pangu. Seus olhos haviam se transformado no Sol e na Lua. Seu suor tornara-se a chuva e o sereno. Sua voz tornou-se o trovão. De suas barbas e cabelos, fizeram-se as estrelas. De seu sangue, os rios. De seu corpo, parte se havia feito o céu, parte a Terra. Seus musculos fertilizaram a Terra, seus ossos se transformaram nas montanhas...Dos parasitas que viviam em seu corpo originaram-se os humanos.
Quanto a Pangu, esse já não existia, ele havia se consumido. Ele era agora todo o Universo
Me parece ser um mito com pelo menos uma tendência panteísta da criação e, pelo que eu entendo, o único dessa natureza (não totalmente Teísta ou Deísta) que encontrei. Pangu, o Deus criador, se transforma ao final no próprio universo, o que o aproxima, portanto, ao Deus de Spinoza e de Einstein (para muitos simplesmente um ateísmo disfarçado...).
Honestamente, ensinar o criacionismo bíblico, além de ingênuo e infantil, é muito arrogante e uma afronta direta à outras visões religiosas e remete, na realidade, a discussões também complexas sobre o próprio ensino de religião nas escolas. Vamos lembrar rapidamente que essa é justamente uma das razões para o Brasil ser um Estado laico, pois as pessoas têm liberdade de escolher a sua própria religião, que são muitas! Vamos ensinar então as diferentes visões religiosas sobre a origem do Universo, da Vida e do Homem? Vai ser complicado colocar tudo isso em termos de "equivalência" com a ciência...Será que o DI apoia todas elas também? Mas a questão do ensino religioso não é o foco aqui, vamos voltar à questão do criacionismo...
O outro ponto sobre ensino de criacionismo que quero explorar com mais calma é a ideia da pesquisadora e ativista norte-americana Eugenie C. Scott, que classificou as diferentes maneiras de encarar a evolução ao longo de um continuum de visões de mundo (que passo a chamar aqui de “Escala de Scott”), como mostrado na Figura abaixo. Fiz algumas modificações e ampliações da figura original de Scott a fim de apresentar alguns argumentos e posições de forma mais clara.
Quando falamos em criacionismo, ou melhor, de criacionistas, estamos normalmente nos referindo a pessoas que acreditam que não houve evolução e que a vida surgiu na Terra há poucos milhares de anos, seguindo uma leitura literal do Genesis bíblico, que seria na realidade o terceiro nível na escala de Scott (criacionistas de terra jovem). Por outro lado, quando falamos em alguém como “evolucionista”, estamos normalmente associando isso a uma visão materialista e, principalmente, naturalística da ciência e da evolução, onde causas sobrenaturais não devem ser invocadas para explicar a evolução (evolucionismo materialista/naturalista). Entretanto, a situação é mais complicada e, como mostra Scott, há uma falsa dicotomia entre “evolucionismo” e “criacionismo”. Na prática, o que temos é uma série de visões “intermediárias” ao longo de um continuum que coloca ciência ou religião em posições opostas.
Importante ressaltar desde o início que estou usando as palavras “ciência” e “religião” aqui em um contexto bem específico, no sentido de que, no extremo, “ciência” indica uma visão estritamente materialista, enquanto que “religião”, no extremo, indica uma leitura literal da Bíblia e do Gênesis (excluindo, portanto, outras religiões e filosóficas metafísicas relacionadas). Sei que as duas palavras têm significados diferentes e mais amplos, mas uso aqui nesse sentido apenas como uma simplificação, para facilitar a compreensão de um gradiente entre uma visão totalmente materialista/naturalista e uma totalmente metafísica. Então, o que quero dizer com as setas em direções antagônicas na minha versão do diagrama de Scott é que, quando alguém aceita o terraplanismo por causa de citações bíblicas, por exemplo, essa pessoa está totalmente "imersa" em um mundo teológico e metafísico, de modo que a (sua) religião é o modo predominante de entender o mundo (por mais equivocada que essa visão possa ser, para muitos, mesmo sob um ponto de vista religioso).
Sugiro que os interessados leiam no artigo de Scott ou no seu livro (Evolution vs Creacionism: na introduction) os detalhes de cada uma das categorias. Rapidamente, a ideia é que começamos com uma visão bastante literal do Genesis e da Bíblia, com algumas pessoas que pensam que há, aí, passagens que sugerem que a Terra é plana e que ela está no centro do Universo (vejam o artigo muito interessante de Carlos Orsi sobre uma dicotomia no movimento de “terraplanismo” atual). Em princípio, essas pessoas não falam em evolução, mas se elas aceitam ideias tão radicalmente equivocadas como terraplanismo e geocentrismo a partir da leitura da Bíblia, já podemos imaginar que elas pensam da evolução! No nível seguinte da escala teríamos o criacionismo em um sentido estrito, que Scott chama de criacionistas de terra jovem.
Em seguida temos uma ideia de criacionistas de lacunas, que aceitam a antiguidade da Terra, a partir do argumento de que há um grande intervalo de tempo "real" entre os versos 1 e 2 do livro do Genesis (mas a partir do momento que Deus inicia a criação, de fato teriam se passado os 6 dias literalmente). Outra possibilidade de compatibilizar o Genesis com a antiguidade da Terra, que começa a partir do início do século XVIII, foi pensar que os dias mencionados na criação biblica são "metafóricos", correspondendo, de fato, a grandes extensões de tempo ou eras (criacionismo com analogia dia-era). Um passo seguinte em termos de compatibilização da evidência do registro fóssil com o Genesis seria pensar que Deus, de fato, não criou todas as espécies de uma vez, mas foi fazendo isso sequencial e progressivamente, no criacionismo progressivo. Em uma versão simplificada e pouco acurada da paleontologia, isso faria sentido uma vez que organismos mais "complexos" aparecem mais recentemente no registro fóssil. Todas as visões até aqui, portanto, sustentam que a vida foi criada por atos diretos de Deus, em atos mágicos de criação especial. Mesmo quando alguns aceitam pequenas variações entre espécies, até mesmo por seleção natural, é indiscutível que Deus criou os tipos de organismos. Temos, apesar de pensarmos em criação especial até aqui, um aceitação crescente da evidência científica da Geologia e da Paleontologia, por exemplo (como indica a seta na direção da "ciência").
Outra possibilidade ao longo do continuum é que, na realidade, Deus tenha criado a vida com potencial para evoluir e que Ela (ou Ela) teria de fato criado o Universo com suas propriedades empíricas tais quais reconhecidas pela ciência. Poderíamos pensar em uma ampla categoria de criacionismo evolutivo, reconhecendo o papel de Deus em definir as propriedades do Universo e da vida, de modo a seguir Seu plano divino de criação. Haveria toda uma série de possibilidades aí, ligadas à uma maior ou menor intervenção de Deus em alguns momentos da Evolução, e seria algo próximo do Evolucionismo Teísta (talvez fosse melhor deixar os dois na mesma categoria; eu deixaria o criacionismo evolutivo no sentido de aceitar mais intervenções sobrenaturais...). A Igreja católica, por exemplo, adota oficialmente já algum tempo posições nessa linha, aceitando que Deus, em maior ou menor grau, eventualmente interfere no mundo natural (na criação da alma humana, por exemplo) e que o Homem seria o ápice da evolução, o ponto “ômega” de Theilard de Chardin (e sempre rejeitando a visão extrema do materialismo/naturalismo na evolução).
No extremo da escala de Scott temos o evolucionismo agnóstico e o evolucionismo materialista/naturalista, sendo que, no primeiro, a questão de Deus não é considerando relevante pois não é possível, por definição, incluir ou excluir categoricamente o papel de uma divindade na evolução e na origem da vida. Como já mencionado, no extremo do continuum temos a visão de que nenhuma explicação sobrenatural ou metafísica é necessária para entendermos a evolução.
Quero chamar atenção para dois pontos importantes no diagrama de Scott modificado apresentado acima. Em primeiro lugar, apesar do longo continuum de visões, há dois conjuntos de categorias, um deles referente à idade da terra (antiga ou recente) e outro em termos de “evolução” e “criação especial”. Em um certo sentido as duas categorizações estão correlacionadas com uma visão de ciência e anti-ciência, ou entre ciência e religião, como indicado nas setas da figura, mas a primeira delas (terra antiga/jovem; a linha tracejada superior no diagrama acima) se coloca mais claramente no sentido de negar a evidência científica disponível atualmente (ou seja, se alguém acredita que a Terra foi criada há alguns milhares de ano, não dá para falar muito mais em ciência...). Por outro lado, a separação entre criação e evolucionismo me parece ser um pouco mais difícil e mais difusa ao longo do continuum (por isso a demarcação está na forma de uma faixa sobre o criacionismo evolutivo e o evolucionismo teísta, na minha versão do diagrama...). O que quero dizer é que, na prática, para ser um cientista e trabalhar com evolução não é preciso, necessariamente, adotar uma posição materialista e ateísta (embora, como já coloquei anteriormente, acho que é difícil pensar na avaliação da evidência, mas tudo bem...). Marcelo Gleiser, por exemplo, coloca em uma excelente entrevista recente que, em um certo sentido, a posição ateísta é, filosoficamente falando, de certo modo anticientífica e, como dizia Thomas Huxley ainda no século XIX, o agnosticismo seria uma posição mais “honesta” (não sei se concordo, mas dá o que pensar...vejam uma entrevista muito legal dele no final da postagem). Newton Freire-Maia (1918-2003), um dos pioneiros da pesquisa em genética humana e médica e evolução no Brasil e professor da UFPR, sempre insistiu que o “criacionismo” em um sentido estrito deveria ser chamado de fixismo (ele mesmo adotando pessoalmente, como católico e um grande fã de Teilhard de Chardin, uma posição de evolucionismo teísta, ou um criacionismo evolutivo, eu diria...).
Portanto, uma questão central para se discutir é: em que ponto na escala de Scott temos realmente um conflito real na compreensão da evolução a partir da evidência científica e empírica? Em que ponto a visão religiosa e metafísica do mundo começa a atrapalhar e distorcer o trabalho de um pesquisador que trabalha com evolução e com biologia? Muitos podem trabalhar normalmente com biologia e evolução e gostar, por exemplo, da ideia do evolucionismo deísta, ou mesmo teísta, em que um Deus, uma entidade superior, criou a vida com propriedades para evoluir e que de certo modo Ele ou Ela conduz o processo e eventualmente pode até interferir nele (na origem da própria vida e na origem da mente ou da alma do Homem, por exemplo - aliás, diga-se de passagem que esse último ponto levou à uma certa "ruptura" entre Wallace e Darwin, já perto da morte de Darwin; este achou que Wallace estava “traindo” a ideia da seleção natural e da evolução por acreditar que a mente humana era algo "especial"). Na verdade, essa posição é conhecida como “Deus nas Lacunas”, ou seja, a criação especial ou um ato divino ou sobrenatural, metafísico, é utilizado como “explicação” para algo que não sabemos ainda em termos científicos (mesmo que não como uma explicação científica no dia-a-dia, mas apenas algo para “satisfação interior”). Eu diria que o ponto importante, nesse caso, é que a atitude do cientista em relação à evidência e a coerência de preencher a lacuna com ciência, quando isso venha a acontecer, não seja afetada por essa visão religiosa.
Outro aspecto da escala de diagrama de Scott para o qual quero chamar atenção é a posição do DI. Ele não aparece como uma categoria (embora no texto dela sim), mas como algo que pode ser posicionado ao longo do continuum (vejam a figura original dela aqui). Isso porque, de fato, o DI pode ser invocado para explicar a origem dos grupos ou de propriedades da vida em diferentes escalas. Não sei bem se isso existe, mas eventualmente alguém poderia até querer, honestamente, usar o DI como uma "explicação" no criacionismo evolutivo ou no evolucionismo teísta para explicar a origem da vida (por um ato divino) e de suas propriedades fundamentais. Alguém poderia dizer que “acredita” na evolução sem problemas, mas acha - equivocadamente - que o DI poderia ser importante para “explicar” a origem da vida em seus níveis mais fundamentais, por exemplo (no contexto do teísmo evolutivo). Mas claro que, de modo geral, como já discutimos, o DI está bastante associado com visões mais fundamentalistas e mais "altas" na escala de Scott, sendo melhor caracterizada realmente como pseudociência do que como uma tentativa honesta de resolver o “Deus nas lacunas”, com o objetivo de criar falsas controvérsias para negar a evolução e encontrar uma "brecha" para ensinar criacionismo no sentido estrito.
Finalmente, quero levantar um aspecto que muitos podem achar polêmico, mas que me parece ser a ideia de Scott ao propor seu diagrama. Me permitam também expor um conflito pessoal sobre esse assunto. Claro que é ilegal, aqui no Brasil e nos EUA, e na maior parte do mundo, impor tanto uma visão religiosa (ou anti-religiosa) nas escolas públicas, afinal o Estado é laico. Mas é possível e legal discutir as ideias sobre ciência e religião em um sentido amplo, como elas funciona e qual o seu papel na sociedade. Todo o movimento que fazemos tem sido contra o ensino de criacionismo e do DI como sendo uma ciência e “equivalente” à teoria evolutiva, o que é filosoficamente correto e faz todo sentido. Sempre pensei assim e nunca, nas minhas aulas de evolução ou de paleontologia, sequer mencionei essa questão de criacionismo. Por outro lado, sempre discuto o assunto quando dou aulas de filosofia da ciência ou metodologia da pesquisa (em biologia), no contexto de ciência e religião. Eventualmente algum aluno de evolução ou paleontologia se manifesta nesse sentido e eu simplesmente “corto” a discussão e digo que isso é uma questão de religião e que esse é um tema que deve ser discutido em outro lugar. Certo, mas pensando bem, em que lugar? E se ele ou ela não tiver outras aulas de filosofia de ciência que permitam discutir isso? Quando e onde ele ou ela vai ter a oportunidade de realmente discutir isso em um nível mais elevado e sem componentes de doutrinação?
Então, desde que li pela primeira vez os trabalhos de Scott e vi seu diagrama, fico em dúvida se não estou, de alguma forma, me escondendo do problema com essa postura de nem mencionar criacionismo nas aulas de evolução ou em aulas de temas mais “científicos”. No meu caso, acho que fico com receio que os alunos entendam que, se eu tocar no assunto ou “abrir” o debate, eu estou colocando as coisas de forma “equivalente” e que há realmente uma discussão científica sobre isso, e aí simplesmente me retraio e não toco no assunto. Confesso que também tenho uma certa "preguiça" de entrar nesses debates, o que obviamente se mostrou uma posição totalmente equivocada, dado o crescimento desses movimentos reacionários e anti-científicos. Fiquei pensando e acho que pode estar havendo, na minha cabeça, uma confusão entre não ensinar criacionismo como equivalente à teoria da evolução (o que é correto) e não mencionar criacionismo em aulas de ciência e não assumir que pode existir ali na sala pessoas que “não acreditam” em evolução (já não sei mais se é correto). No fundo, quero apresentar a evolução de forma tão fortemente factual que espero que um aluno que tenha uma visão criacionista perceba que tem alguma coisa errada com o seu pensamento e passe a se questionar. Santa ingenuidade...
Estou achando que essa posição minha pode estar equivocada e talvez não esteja funcionando. Sempre fico com a sensação que, no fundo, esse aluno ou essa aluna pode estar pensando algo como “...esse professor está falando essas heresias contra a Bíblia, eu vou estudar e escrever isso na prova para me livrar dessa matéria, mas de fato eu não acredito em nada disso. Xô Satanás...!” Estou assumindo isso porque acho que muitos professores podem estar passando pelo mesmo dilema.
Mais importante, talvez o continuum de visões proposto por Scott seja uma oportunidade interessante que podemos aproveitar para discutir o que é ciência, qual o papel da evidência e qual a importância e relevância, para cada um, de certas discussões metafísicas que envolvam visões filosóficas sobre evolução e sobre a existência de Deus. Isso é absolutamente importante em cursos de filosofia da ciência ou análogos, mas de repente pode ser importante reforçar isso também em cursos de evolução ou de paleontologia, paciência...
Nós queremos evitar que as crianças sejam expostas a esse tipo de visão anti-científica e distorcida de criacionismo em um sentido estrito, ou do DI em um nível mais “avançado”, mas será que estamos realmente conseguindo colocar as ideias “corretas” no lugar? Como discuti na minha postagem anterior, essa exposição está acontecendo o tempo todo, totalmente fora do nosso controle! Acho que essas ideias sobre criacionismo serão apresentadas às crianças de qualquer forma e muito cedo, antes da escola inclusive (e em especial àquelas que têm pouco acesso à educação formal e a outras fontes de informação e que são fortemente doutrinadas...). Mais sério ainda, são utilizados argumentos contundentes e agressivos contrários ao ensino de biologia e à própria escola (algo como “não acredite no que o professor de ciências diz...”, “se você acreditar nisso você vai para o inferno”, ou “seu professor está sendo influenciado pelo demônio”). Se isso é verdade, então talvez uma estratégia melhor seja nos anteciparmos e realmente atacarmos o problema de frente.
Então, sei que propor uma discussão explicita sobre a escala de Scott nas escolas ou nos cursos de biologia pode ser, mais uma vez, uma proposta ingênua e utópica (e talvez desesperada...), mas realmente o que percebo é que estamos “perdendo” a discussão. E talvez estejamos também perdendo a oportunidade de apresentar para os alunos uma discussão filosófica madura sobre ciência e religião. Como coloquei acima, a discussão não é simples, mas talvez seja uma saída... Talvez seja melhor que os cientistas e professores, de modo geral, entendam a escala de Scott e mostrem isso aos seus alunos, discutindo de forma honesta e clara todos os aspectos envolvidos. Pessoalmente, pelo menos vou ficar com consciência tranquila de que não fui omisso na discussão (e tenho me sentido assim nos últimos tempos...).
Fonte: https://www.blogalexdiniz.com/post/criacionismo-e-a-escala-de-scott