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Autor: Ascom Adufg-Sindicato

Publicado em 18/06/2024 - Artigo de Opinião

Lições da greve e os custos da intransigência política

Lições da greve e os custos da intransigência política

Artigo de opinião escrito pelo professor Sidartha Soria (Universidade Federal de Pernambuco)

 

Alcançando já dois meses de paralisação parcial das universidades federais, façamos um breve balanço da situação atual, tentando extrair dele algumas lições, pelo menos para as mentes ainda abertas ao ofício da reflexão.

No momento, um aparente impasse se coloca à mesa: o governo teria alcançado o limite em relação ao que pode fazer para reduzir os prejuízos sofridos pela comunidade universitária entre os sombrios anos de 2016 e 2022. Diante deste limite, o PROIFES decidiu, seguindo a maioria dos sindicatos federados, aceitar a última proposta colocada na mesa.

A proposta final não é, como se sabe, o que desejaria idealmente a categoria, mas traz avanços. Considerando a carreira até 2026, a categoria docente terá aumentos nominais entre 28,2% (titular) e 43,9% (nova carreira de entrada reestruturada, conforme defendia o PROIFES). Os ganhos reais (com inflação projetada de 16,36% no período, girarão entre 10,20% (titular) e 22,90% (entrada), com 9,3% no miolo da carreira (C/D III).

O ANDES-SN, por outro lado, resolveu insistir em seguir com a greve parcial, obtendo com isso uma outra reunião – em que o governo manteve a proposta da mesa anterior –, e a seguir mais uma data, isso após decidir manter uma pitoresca “vigília” na sala da reunião no MGI. Neste momento, O ANDES foi se obrigando a rebaixar sua proposta para níveis até piores em alguns aspectos ao já assinado pelo governo e PROIFES, com aumentos nominais de 18,85% em todos os níveis da carreira. Além disso, defendem uma esdrúxula reestruturação da carreira, extinguindo as classes em lugar de 13 níveis (elevando de 19 para 24 anos o tempo necessário para alcançar a posição de titular) e reduzindo a contribuição por titulação, tirando assim o estímulo à qualificação acadêmica.

Enfim, enquanto o ANDES e seus simpatizantes nutrem a esperança de que suas quixotescas iniciativas consigam mudar o rumo dos acontecimentos, tentemos extrair algumas lições da situação até aqui.

A primeira lição é sobre timing, tanto para o governo quanto para o movimento sindical. O descontentamento da categoria docente com condições de trabalho e salários é indiscutível. A terra arrasada em que assumiu o atual governo, um cenário de escombros após 8 anos de bombardeios por um governo liberal-conservador seguido por um governo protofascista, já havia ensejado em todos a necessidade de acordar esforços para a reconstrução. Neste mesmo cenário, o fato de o governo não ter considerado dar algum reajuste no ano de 2024 agiu como uma faísca no paiol. A ideia da greve acabaria por funcionar como uma válvula de escape para todo o descontentamento da categoria. Esta seria a falha do governo.

Por outro lado, nenhuma greve seria capaz de corrigir o problema a esta altura. O orçamento federal de um ano é pensado, negociado e determinado no ano anterior. Se o governo afirma não ser possível conceder reajuste à categoria neste momento, isso se deve às diretrizes já amarradas pela lei orçamentária. Afinal, estamos falando de uma categoria – a docente – que representa quase 1/4 de todo o corpo de servidores federais. A falha de timing, aqui, seria então do movimento sindical docente, ao ter dedicado seus esforços em prol da pauta salarial fora do momento. Neste sentido, o PROIFES pode ter errado menos, ao entabular negociações meses atrás, ainda que isso já fosse ter efeitos aquém do desejado. O ANDES-SN, por sua vez, parece completamente fora da realidade, ao partir para uma forma de enfrentamento tão agressiva quanto inócua.

A reconstrução será fruto de esforços conjuntos, dialogados e permanentes, levando em consideração uma conjuntura política ainda extremamente delicada e difícil para as forças progressistas da nação, que, representadas pelo atual governo, ainda se encontram sob cerco de fascistas e plutocratas, os quais foram derrotados na batalha da eleição presidencial, mas a guerra continua e aqueles parecem longe de terem sido devidamente contidos.

Neste sentido, a atual proposta, ou mesmo uma proposta melhor, poderia ter sido fechada sem necessidade de greve. A insatisfação da categoria é real, mas a batalha por salários e condições de trabalho deve ser travada no processo de definição da Lei de Diretrizes Orçamentárias. A greve, a despeito de expressar o descontentamento do segmento docente, estava fadada ao insucesso desde o início. Pior, ela terá gerado inutilmente uma carga adicional de desgaste físico e mental a uma comunidade universitária já exausta por anos de calendários conturbados em razão da pandemia.

A segunda lição é que a direção nacional do ANDES-SN, exibindo traços de sectarismo e intransigência, parece apostar em uma tentativa de capitalizar a insatisfação da categoria para impulsionar a sua pauta político-ideológica particular. Partindo de uma leitura superficial de clássicos do pensamento de esquerda e marxista, o sindicato nacional docente tenta difundir a tese de que todos os governos são sempre adversários da “classe trabalhadora” – e que o governo Lula, por sua origem social proletária e popular, mereceria inclusive um grau adicional de agressividade por parte do ANDES. Mas aqui parece faltar um lastro de legitimidade em tamanha combatividade do ANDES. Afinal, o governo anterior, francamente protofascista, deu reajuste zero em todos os anos, despedaçou orçamentos para as IFES e chegou a colocar terraplanistas e pastores caça-níqueis à frente do MEC, sem que nada disso tivesse despertado mais do que notas protocolares de repúdio e zero assembleias pelo ANDES. Tal inépcia, ainda mais em se tratando do sindicato que se apresenta como campeão da luta pela classe trabalhadora, corroeu sua legitimidade em assumir tal papel.

A terceira lição é que assembleias esvaziadas, com frações insignificantes do universo total de docentes nas universidades, não representam maioria de coisa alguma, muito menos a “vontade das bases”, como gosta de bradar a direção do ANDES-SN. Neste sentido, o modelo de votação eletrônica – que, já testado nas agremiações sindicais que formam o PROIFES – já demonstrou ser um instrumento superior de participação da categoria na tomada de decisões a orientar a conduta de sua representação sindical. Estranha, a este respeito, é a insistência do ANDES-SN em manter o formato de assembleia presencial física com comparecimento mínimo de docentes. Por que o ANDES é contra mecanismos que garantem uma ampliação incomparável da categoria no processo decisório?

Finalmente, a quarta lição seja talvez a mais importante, e sem dúvida a mais amarga: a greve acarreta custos dolorosos, que serão tanto maiores quanto mais tempo durar a greve. Referimo-nos aos custos físicos e psicológicos sobre docentes e discentes, e econômicos para o alunado. A primeira ordem de custos diz respeito ao significativo desgaste a ser sofrido por docentes que deverão repor aulas em calendários ainda mais espartanos, isso considerando que boa parte destes docentes não parou inteiramente suas atividades, continuando a fazer pesquisa, orientar discentes e mesmo a dar aulas em programas de pós-graduação. Isso também vale em boa medida para o segmento discente. Em suma, ao imenso cansaço sofrido por docentes e discentes em anos de calendários comprimidos, com recessos curtos para fazer voltar aos eixos um sistema que foi devastado pela pandemia, deve-se somar o cansaço e desgaste que aguardam a todos após o fim da greve.

E deixamos a última palavra para aquele que pode ser o aspecto mais cruel desta greve, uma greve cultivada em descontentamento real, mas deflagrada fora de timing e prolongada além do razoável por interesses político-ideológicos particulares. O movimento paredista parece não se dar conta de que a universidade federal brasileira de 2024 possui quase metade de seu universo estudantil composto por discentes oriundos das cotas sociais e raciais. Ao contrário do alunado típico de classe média, que naturalmente pode esperar mais tempo por contar com mais coberturas (material, econômica, psicológica...) familiares, para o alunado cotista o tempo é uma variável crucial. São estudantes vindos das periferias urbanas, dos estratos socioeconômicos mais baixos, e, portanto, muito mais vulneráveis aos prejuízos normais advindos de qualquer paralisação ou movimento paredista. Neste aspecto, portanto, mais do que em qualquer outro, a responsabilidade da comunidade universitária é vital, e a irresponsabilidade, indesculpável.