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Autor: Ascom Adufg-Sindicato

Publicado em 03/07/2024 - Na mídia, O Globo

Doutorado sanduíche: defasagem de bolsas impõe restrições e trava oportunidades de estudantes fora do país

Doutorado sanduíche: defasagem de bolsas impõe restrições e trava oportunidades de estudantes fora do país
Édypo Melo é doutorando em astrofísica na Califórnia: cientista precisa racionar comida para pagar despesas, inclusive as que tem no Brasil — Foto: Divulgação

Por O Globo

O doutorando em astrofísica Édypo Melo, de 34 anos, conta viver uma situação de penúria desde que chegou na Califórnia, nos Estados Unidos, há um mês, para dar início ao tão sonhado doutorado sanduíche junto à equipe da Nasa. O motivo é que as bolsas pagas pela Capes não são reajustadas desde 2013, prejudicando a qualidade de vida dos estudantes no exterior. Segundo o cientista, o racionamento de comida é a principal forma de economia: ele almoça salsicha todos os dias e planeja até vender plasma do sangue (permitido no país) para conseguir arcar com todas as despesas, incluindo as que deixou no Brasil.

O programa oferecido tanto pela Capes quanto pelo CNPq prevê um estágio temporário de seis meses no exterior para doutorandos, mas, diferentemente de outras bolsas, não teve reajuste em 2023. Cada estudante recebe US$ 1.300 mensais (cerca de R$ 7.179), e quando a pesquisa acontece em cidades consideradas de alto custo o valor é acrescido em US$ 400 — atingindo aproximadamente R$ 9.388.

A quantia, porém, segundo o pesquisador, que estuda a possibilidade de vida em outros planetas, não cobre sequer a taxa mínima estipulada pela Nasa, de US$ 2,4 mil por mês (cerca de R$ 13,2 mil) — valor 41% maior que sua bolsa mensal. Para conseguir ser aprovado pelo órgão espacial, seu orientador precisou fazer uma carta garantindo que o restante do dinheiro seria enviado com aporte de uma pesquisa que está sendo desenvolvida na Universidade Federal do Sergipe, onde Édypo iniciou o doutorado.

— Tive uma dívida de quase R$ 3 mil apenas com vistos e taxas do consulado porque esse valor não é coberto pela Capes. Na Califórnia, apenas o aluguel é R$ 5,5 mil, em uma casa compartilhada com outras quatro pessoas — relata. — Aqui, nós brasileiros já somos conhecidos por termos poucos recursos. O governo brasileiro está manchando a imagem de seus cientistas — desabafa o bolsista.

Em 10 anos, pela correção inflacionária, a bolsa de US$ 1,3 mil deveria ter sido reajustada, em dólar, para, no mínimo, US$ 1.754, que pela cotação brasileira atual é cerca de R$ 9.686. Já nas cidades de alto custo, o valor inflacionado deveria ser de R$ 12.666 e, ainda assim, não conseguiria suprir os gastos de alguns estudantes.

Orçamento para auxílios

Em nota, a Capes e o CNPq informaram que “dificuldades orçamentárias ainda impedem a imediata correção” do valor das bolsas, “mas estudos para a suplementação dos recursos estão sendo realizados para que essa medida seja tomada o mais rápido possível”. Segundo a Capes, em fevereiro, o número de cidades consideradas de alto custo foi triplicado — passou de 188 para 579. Juntos, os órgãos disponibilizam cerca de 4 mil bolsas no exterior anualmente — 75% delas são da Capes.

De acordo com o presidente da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPGc), Vinícius Soares, desde o último reajuste, há 10 anos, diversas reuniões já foram realizadas junto ao governo federal, sem sucesso. Ele afirma que para suprir a demanda dos doutorandos, a bolsa padrão ideal deveria ser de US$ 3 mil, com um adicional de US$ 800 nas cidades de alto custo. Para isso, o Capes precisaria de uma injeção de R$ 72 milhões no orçamento.

— Além da inflação dos outros países, existe a questão da guerra na Ucrânia, que faz com que os preços subam, e os doutorandos não podem trabalhar por terem visto de estudante. Essa crise pode causar problemas diplomáticos no Brasil porque muitas universidades estrangeiras já estão negando a entrada de brasileiros por não apresentarem o valor necessário — avalia Soares.

Bolsas do doutorado sanduíche não são reajustadas desde 2013 — Foto: Arte O Globo

Bolsas do doutorado sanduíche não são reajustadas desde 2013 — Foto: Arte O Globo

O pesquisador Sherlon Almeida, de 28 anos, foi aprovado para o doutorado sanduíche na Universidade de Nova York, nos EUA. A cidade foi considerada a mais cara do mundo e registrou linha da pobreza per capita em 2022 de US$ 20.340 anuais, cerca de US$ 1.695 ao mês — quantia que é apenas cinco dólares menor que a bolsa atual da Capes. O alto custo de vida e o risco de concluir com dívidas o programa são preocupações.

— Embora a minha universidade não cobre taxas, é exigida condição financeira 65% maior do que o valor atual da bolsa. Todo networking e aprendizado daqui de fora poderá ser aplicado no Brasil, mas não há valorização — relata o cientista, que pesquisa formas de aprimorar algoritmos em imagens e objetos 3D, o que pode contribuir, por exemplo, para melhorar procedimentos cirúrgicos por meio da robótica.

Custo do acompanhante

Ir estudar sozinho é um alívio no bolso dos pesquisadores, mas nem todos têm essa opção. Uyara Gomide, de 36 anos, estudou o sistema prisional por seis meses em Londres, na Inglaterra, e precisou levar o filho, de seis anos. Ela conta que chegou a perder a oportunidade de realizar um estágio docência porque não tinha como pagar uma babá no período em que o menino estava fora da escola. Atualmente, tanto a Capes quanto o CNPq não têm previsão normativa que permita a concessão de dinheiro adicional para doutorandos com filhos na modalidade sanduíche.

— Por muitas vezes não consegui estar presente na universidade e tive que levar meu filho para congressos. É uma situação desgastante, que pleiteamos há muito tempo, mas não houve ainda avanços para nós que vamos acompanhadas — diz a pesquisadora.